18/02/2013 12:30

SESSÃO EXTRAORDINÁRIA

 

SESSÃO EXTRAORDINÁRIA

 

 

 

 

 

Jorge W. Torres

 

 

 

 

Caros amigos, leitores e leitoras,

 

Para compreender as razões tantas que elevam este conto a um nível de quase comédia é preciso que seja lido a partir do prólogo, pois a vida do nosso personagem desde o local de onde veio e como viveu, sua escolaridade e seu projeto de vida são elementos fundamentais para compreendermos os episódios.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Prólogo

 

 

Naquele ano eu tive a oportunidade de visitar Fortaleza, que era meu sonho de infância, e como era criança, qualquer pensamento que se parecesse infantil era perdoável, mas confesso que acreditava que lá encontraria a energia de José de Alencar, que eu tanto conhecia através das minhas releituras de Iracema, Senhora e o Guarani. Eu era um menino que queria ser um escritor como ele,  mas caso não desse pra ser como Alencar, que fosse pelo menos parecido com Drummond, Raquel de Queiroz, Machado de Assis ou Clarice Lispector. Era a literatura que eu tinha acesso na biblioteca da escolinha onde iniciei a segunda parte do ensino básico. Só mais tarde fui descobrindo que não precisava parecer com ninguém, só comigo mesmo.

Cheguei em fortaleza e fiquei encantado. Era 1996. Como quem vivesse finalmente o sonho de ir àquela capital,  meu pai, atendendo aos meus apelos, me levou para conhecer a casa em que José de Alencar havia morado. Foi grande a felicidade e  senti, salvo as influências psíquicas, eu me sentia energizado do espírito de um grande  escritor –pensava comigo.

Naquela noite não deu para pregar no sono, só pensava neste fato. Minha vontade era de começar a escrever ali mesmo. Varei a madrugada esperando a hora de debruçar-me sobre a mesa, e como um animal voraz estraçalhar  a língua portuguesa deixando espalhada por várias folhas de papel em forma de obra de arte. De nada adiantou. A história não veio naquela noite.

Meio desiludido, pela manhã cheguei até a esquecer desta história de livro trocando-o pelo encantamento da bela cidade de fortaleza, praia de Iracema, futuro e o centro da cidade, onde paramos para ouvir cantorias. O dia foi pequeno para tanta novidade. Já era noitinha quando voltamos para a casa do meu tio Manoel.

Ocorre que o destino apronta cada uma com quem se predispõe a querer ser caçador de ilusão, que uma surpresa tive quando me veio lembranças de um fato ocorrido no interior do Pará e que me pedia para escrever. Puxa! Não vai ser nunca um Guarani. – pensei entristecido. – mas mesmo assim pus as mãos ao ofício recalcado da literatura que foi possível. Ia eu iniciar uma comédia desprovida de intencionalidade e tampouco de felicidade. Imaginem só uma comédia que nasce no meio do tédio. Tarefa difícil.

As lembranças que tive eram de um vereador de uma pequena cidade do interior do Pará, cuja criatura tive a oportunidade de ver numa sessão especial da Câmara daquele lugar. Era um homem de imediata sabedoria do senso comum, mas não dava para esconder nas suas palavras a rudeza com que tratava a língua portuguesa, logo dava para perceber que se tratava de um homem que havia sentado muito pouco em um banco de escola.

Claro que não foi a inspiração que eu havia imaginado após conhecer a casa em que viveu Alencar, mas foi o que me veio. Decidi então criar uma história em que o contexto fosse uma câmara de vereadores. Aí surgiu SESSÃO EXTRAORDINÁRIA. Um livro que ficou engavetado por mais de década e meia, cujo tempo me mostrou que não havia razão para publica-lo, pois era uma construção literária que possivelmente não passava de um ensaio.

Tudo bem, não posso negar que nesses últimos dez anos eu o li, e reli e fui procurando lapidar um pouquinho mais de tal modo que não perdesse a forma original, afinal ela representa um tempo, um momento de minha vida, cujo valor deve coincidir com a época em que o escrevi.

Mas hoje resolvi trazer à tona esta humilde façanha de um escritor que procurava dar os primeiros passos. Os nomes e os lugares ganham um toque de pura ficção, bem como os episódios. A única coisa que se aproxima do vereador que me inspirou é o fato de ser um homem público de uma ignorância peculiar, mas que ironicamente passa a assumir uma importante função social.

Aqui Onózio, o personagem central, é um homem de boas e más intenções, e que, por consequência de como chegou ao poder, vive os dramas de uma gestão repleta de atrapalhadas.


O processo eleitoral

 

O rio Aruanã era sempre a o caminho mais curto para quem desejasse chegar à pequena cidade que tem o mesmo nome. Um lugarzinho de ruas estreitas e miseráveis, com um aglomerado de casas que circulam o pequeno centro de ruas de barro calcado e algumas forradas com pedras desordenadas e pontiagudas. O centro da cidade se confundia com o fim, de tão pequena que era Aruanã, mas se diferenciava da periferia por reunir todos os poucos  prédios públicos do lugar.

 

O lugar pacato e de gente humilde estava ali estendida às margens do rio há mais de um século, como se o progresso nunca pudesse chegar, principalmente porque raramente o progresso chegaria naqueles pequenos barcos que iam abarrotados de pessoas dividindo espaços com caixas, porcos, frangos e grãos para serem vendidos na cidade mais próxima, e sempre na volta traziam um punhado de mercadorias para a quitanda de Leôncio, que aproveitava a descida do barco para economizar.

Promessa de desenvolvimento e progresso sempre tinham para Aruanã, e o povo sempre se alegrava quando ouvia as previsões. Mas isso só acontecia em ano de eleição. As promessas de uma cidade  melhor enchia de lágrimas os olhos dos anciões que achavam que nunca iam poder esperar esse tempo que não chegava nunca, As mães ficavam ansiosas para ter escolas de qualidade para não verem os seus filhos enveredando para as drogas, como muitos que já estavam; e os jovens se enchiam de esperança de um futuro melhor, pois eram muitos discursos de educação e oportunidade de futuro, o mesmo que os velhos ouviam no passado.

Mas era sempre a mesma coisa, e a mesma coisa era sempre o nada. Os anos iam corroendo a esperança de novos e velhos. De vez em quando até se alegravam quando volta e meia aparecia um candidato que falava bonito e firme. – agora esse é bom. Se iludia novamente aquela gente humilde e desinformada.

Mas, resumindo, ocorria que os que eram eleitos no lugar se desculpavam dizendo que não faziam por culpa dos eleitos que iam embora, e o povo ficava à mingua, porque os de fora só apareciam em tempos de eleição com seus discursos prontos e preparados para seduzir as mentes frágeis daquela gente de Aruanã. E assim o ciclo era sempre esse. Tudo era prometido e nada  cumprido.

O lugarzinho era formado por pessoas de todos os lugares, mas principalmente nordestinos de pouca formação escolar.  Migrantes  que traziam na bagagem um punhado de  esperança de mudar de vida nas riquezas da Amazônia., e do lado a mulher e uma renca de meninos. Mas os sonhos iam  se desfazendo aos poucos diante das dificuldades que encontravam, e pouco a pouco uns iam embora e outras decidam levar uma vida simples no campo ou nos encostos da cidade, principalmente por não viver espremido entre os grandes latifúndios que se formavam. Uma das saídas era fugir para a pequena vila que se formava. Aruanã é nome indígena, mas que em bom português pode ser também apelidado de terra da desilusão. Não que essa seja a tradução, mas por comportar gente que via a vida e os sonhos desfeitos e pretendia “levar a vida”, como muitos diziam.

Ali mora o homem que deu origem a esta narrativa: Onózio Fontelles. Um dos tantos que chegaram ainda na época em que a máxima tecnologia que conheciam era um radinho à pilha tinham em casa, por meio do ouviam as notícias do Brasil, choraram a morte de Vargas e se encantaram com a abertura da transamazônica e a promessa “terra sem homens para homens sem terra”.

Muitos anos se passaram. Onózio, que só passara alguns meses esquentando um banco de aula lá no tórrido sertão de Ceará, sabia pouco mais que assinar o próprio nome, mas, ironicamente, era um  homem com fumaças de astúcia, e muito treiteiro, ou como diríamos para seus atos de aparente sabedoria, era um homem esperto e que soubera aprender na escola da vida conforme o que sempre lhe sugeria  o saudoso pai, quando este lhe dizia que um homem escolarizado é bom, mas é melhor ser sabido e esperto, pois são estes que  conseguem se dar bem. O velho que sempre dizia isso aos filhos, sempre finalizava com um velho jargão: em terra de cegos que tem um olho é rei.

 Ele já era muito conhecido no município devido a sua fama de falador e por sempre procurar estar à sombra de alguém influente, fosse um político forte ou mesmo um fazendeiro, pois sai que era um desses que acabaria lhe apoiando, pois percebeu que eles estavam sempre apadrinhando alguém para que no uso dos cargos públicos lhes prestasse fidelidade para resolver seus problemas  particulares. E foi a partir daí que  Onózio ao poucos tomou gosto pela vida política local.

Candidatou-se duas ou três vezes, apesar de não ter obtido   sucesso no seu projeto político em nenhuma, jamais pensou em desistir e continuou alinhavando aliados; foi conversando com um aqui, outro ali, até que  chegou a hora de se lançar pela quarta vez como candidato a vereador.

Os tempos já havia mudado muito desde que ele chegara a Aruanã. Os mais velhos, se vivos, jamais acreditariam que finalmente o bendito desenvolvimento estava chegando perto deles, apesar de ter estacionado na cidade vizinha  há muito tempo. A população do lugar havia aumentado. Novas vilas haviam se formado, e até alguns lugares onde o numero de gente aumentou mais, acabou ganhando título de distrito.

O comércio local ganhava mais força. Os prédios públicos antigos haviam sido substituídos por outros mais novos e mais modernos. Algumas ruas já haviam sido asfaltadas, e por isso o povo estava mais confiante. Exceto nos dias de chuva que alagava as casas porque a água não tinha para onde correr, pois os administradores não costumavam fazer esgotos. Possivelmente porque ficam escondidos e o povo esquece. Mas tudo bem. No dia seguinte passa a enxurrada e com ela vai embora também a raiva, e  fica por isso mesmo.

O que não havia mudado muito era o velho hábito da fofoca comum a lugares pequenos: todos sabem de tudo e sobre todos, mesmo que distorcido pelos interesses pessoais. Não havia como fazer algo bom ou ruim que não chegasse aos ouvidos mais distantes. E se fosse coisa  ruim chegaria ainda mais rápido.

Mas, mesmo com o crescimento do lugar, não era ainda grande o bastante para impedir que todos se conhecessem, por mais que fosse apenas de vista. Assim, em época de eleição, costumeiramente, a cidade se dividia em dois grandes grupos em torno dos principais nomes para prefeito. O dia de eleição era dia de correria e conflitos grupais, e o final da tarde, até alta noite, tudo se transformava em uma celeuma de  grande expectativa. O povo se aglomerava na porta do cartório eleitoral à espera dos primeiros resultados que anunciavam tempos em tempos a evolução da contagem dos votos, repassando à multidão os resultados para prefeito e  vereadores, chegando até a apontar os primeiros eleitos antes da meia noite, voto a voto.

 

 

O dia da eleição

 

Passava das onze da noite. Onózio recebeu a notícia de que havia sido eleito com uma votação surpreendente. Parecia-lhe mais um sonho.  Mas procurava conter sua alegria.  Era um grande esforço que fazia para manter-se calmo e segurar a desenfreada alegria de ter sido eleito.

Onózio não cabia em si de tanta emoção. Corria de um lado para outro, saltava, beijava a esposa Zélia a quem confortou dizendo:

- Mulher, a nossa vida agora vai mudar.

Pelo menos isso era verdade. A partir dali, afinal, deixaria de fazer os serviços grosseiros que lhe rendia ao final do mês um mísero salário mínimo e passaria a desfrutar dos dividendos de um homem do legislativo. Até ali, pra aumentar a renda e dar conta da família fazia ainda alguns conchaves e negócios de troca-troca nas feiras de sábado no centro da cidade.

No meio daquela euforia toda lembrou o pai que havia falecido há mais de oito anos. Era ele que sempre dizia em sua sabedoria cabocla dosada de anos de desilusão: “filho, em terra de gente ignorante, vereador não é cargo público, é férias bem remunerada recheada de emprego e dos bons”.

Tá, mas isso é coisa para não se pensar – disse ele para si mesmo.

A noite ia avançando e na cidade o mesmo alvoroço. Ainda não sabiam o resultado dos sete vereadores, e nem do prefeito eleito. Enquanto isso Onózio farreava. Abraçava amigos e compadres que chegavam e aos poucos enchia toda a pequena casa. Era uma festa só.

Raimundo, o compadre “mundico”, com quem ele sempre conversava estava ali desde cedo. Não se contendo também de felicidade, perguntou a Onózio.

- Compadre. O momento é muito bom, mas me diga mesmo, como foi que você fez para alcançar um milagre desses de ter quase quinhentos votos?

Onózio, como num susto único que lhe veio com a feição intrigante de quem não estava preparado para uma pergunta daquelas naquele momento, por pouco não se viu curado do porre que já começava. E disse:

- Deixa pra lá, compadre. Deixa pra lá essa história. Outro dia eu lhe falo. O importante é que nos elegemos. Você não acha?

Mas trocando aqui em miúdos, afinal qualquer narrador deve saber dos fatos, e na condição de narrador me sinto no dever de esclarecer: Onózio havia sido apadrinhado por um grupo de fazendeiros que queriam os benefícios de uma lei municipal para as suas questões de legalização de terras para protegê-los contra os já ameaçadores movimentos sociais que ameaçavam ocupar as grandes áreas, e por essa razão despejaram nas mãos de Onózio dinheiro suficiente para que na véspera da eleição contratasse mais de trezentos cabos eleitorais. Onózio temendo que mesmo assim não conseguir se eleger, contratou por sua conta e risco mais duzentos, os quais ficaram de receber o pagamento no final do dia, após a eleição.

Como estratégia havia pedido para que anotassem o número do título da cada um ameaçando-lhes saber se eles haviam votado ou não. Ele sabia que isso funciona em lugares de gente pouco informada. E deu certo. Pelo menos o voto do cabo eleitoral ele havia garantido para sua vitória.

Naquele momento já começavam a chegar os seus primeiros cobradores. Pouco mais de meia hora já havia ali mais de duas dezenas deles, à espera do pagamento combinado. Onózio que sabia que não tinha como pagar ninguém naquele dia, chamou todos para uma conversa no quintal da casa, e acabou por convencer todos de que naquele momento de festa não iria ter como fazer esse pagamento.

A insatisfação era grande, uns saíram resmungando coisas indecifráveis e outros mais calmo já começavam a ajudar no convencimento daqueles que mais exaltados ameaçavam procurar  o juiz eleitoral. Mas como Onózio era um homem de muitos argumentos, ou popularmente chamado de “liso”,  cautelosamente fez com que todos concordassem que o pagamento seria feito no dia seguinte.

A pergunta do compadre não só lhe causou espanto, como também havia lhe deixado agora preocupado, pois logo que o dia amanhecesse centenas de pessoas estariam à sua porta.

Foi aí que lhe veio uma nova ideia: decidiu que sairia da cidade  ainda naquela noite, antes que  todos  acordassem  da ressaca eleitoral. Buscou na memória um local e veio na lembrança a casa que um amigo lhe disponibilizara num distrito próximo, caso precisasse. Então chamou a esposa pediu para que preparasse algumas roupas e coisas básicas para uma breve viagem  e acordasse os  meninos porque iam  pra lá ainda naquela madrugada.

- Mas Onózio! – Tentou ela questionar.

- Não discuta Zélia. Será melhor para nós.  Inclusive é a única saída que tenho no momento.

A distância de carro da cidade até o distrito era um pouco mais de meia hora indo cuidadosamente pela estrada comprometida pelos rasgos da chuva. O lugar era tão tranquilo que muitos comerciantes da cidade tinham por lá uma pequena xácara ou uma casa para onde iam aos finais de semana em busca de sossego. Por solicitação de um vereador influente, alguns órgãos públicos tinham um “predinho” por lá para ações eventuais que quase não aconteciam, exceto a festa de inauguração destes dosado de um bom discurso. Dentre todos os prédios públicos, um deles era uma residência para o Juiz para eventuais atendimentos no distrito.

 

 

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